quarta-feira, 27 de julho de 2011

Bukowski, o "fodedor de bucetas"

Terminei Elogio da Madrasta há uma semana, mas não tive mais tempo para vir contar. Agora entendo por que quando a gente chega ao fim quer muito que mais alguém leia para podermos comentar sobre como as pessoas podem ser jaguáras (se você não sabe o que é isso, pode vir me perguntar).

Mas enquanto eu não vinha aqui, pensei em muitas coisas para escrever como, por exemplo, Charles Bukowski. Conheci esse autor na faculdade, quando eu estava em uma fase literatura norte-americana. Foi por meio de John Fante, escritor que lamento por ter lido apenas Pergunte ao Pó, seu livro mais célebre. Fante inspirava Bukowski
 e inspirou toda uma geração de jovens escritores americanos.


Bukowski me inspira. Acho que é porque ele é o cara mais jaguára que eu conheço. Passou a infância e a adolescência sofrendo os efeitos práticos da recessão de 1929 e de um pai brutal. Foi um bêbado, um vagabundo, um “fodedor de bucetas” imundo e escreveu tudo isso com tanta paixão que fez muita gente ter vontade de ser também. Para repetir o que eu andei lendo por aí, seu encantamento não se faz pelo valor literário, mas expressivo.  

Fica o prefácio que Bukowski escreveu para Pergunte ao Pó, em 1987. É uma das coisas mais deliciosas que eu já li. Vou dividir com vocês:

Prefácio de Pergunte ao Pó
por Charles Bukowski

Eu era um jovem, passando fome e bebendo e tentando ser um escritor. Fiz a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, e nada do que eu li tinha a ver comigo ou com as ruas ou com as pessoas em minha volta. Parecia que todo mundo estava brincando de jogar com as palavras, que aqueles que não diziam quase nada eram considerados escritores excelentes. Seus escritos eram uma mistura de sutileza, artesanato e forma, e era lido e era ensinado e era ingerido e acabou. Era um esquema confortável, uma Cultura da Palavra, muito malandra e cheia de nove-horas.

Era preciso voltar aos escritores da Rússia pré-revolucionária para achar alguma ginga, alguma paixão. Havia exceções, mas essas exceções eram tão poucas que a gente as lia logo, e lá estava você olhando para filas e filas de livros chatos pra caralho.

Com séculos para olhar para trás, com todas as suas vantagens, os modernos não davam pra saída.
Tirei livro após livro das estantes. Por que é que alguém não diz alguma coisa? Por que é que ninguém sai gritando?

Tentei outros livros na biblioteca. A seção sobre religião era um pé no saco. Fui pra filosofia. Encontrei alguns alemães amargurados que me animaram um tempo, mas não passou disso. Tentei matemática, mas matemática superior era igualzinho religião: não saquei bulhufas. O que EU precisava parecia não existir em lugar algum.

Tentei geologia e a achei curiosa, mas, finalmente, insubstancial.

Achei alguns livros sobre cirurgia e gostei dos livros sobre cirurgia: as palavras eram novas e as ilustrações maravilhosas. Gostei particularmente e memorizei a operação no mesocólon.

Daí eu abandonei a cirurgia e voltei para a sala dos romancistas e contistas (Quando eu tinha bastante vinho barato pra beber eu nunca ia a biblioteca. Uma biblioteca era um bom lugar para ir quando você não tinha nada pra beber nem pra comer, e a dona da pensão estava atrás de você e do dinheiro do aluguel. Na biblioteca, pelo menos, você tinha uma privada que preste). Vi uma porção de vagabundos lá, a maior parte dormindo em cima dos livros.

Eu ficava andando pelo salão, tirando os livros das estantes, lendo umas linhas, algumas páginas, depois pondo de volta.

Então um dia peguei um livro, abri e lá estava. Parei por um momento, lendo. Então como alguém que achou ouro no lixo, levei o livro para uma mesa. As linhas rolavam fácil pela página, havia uma corrente. Cada linha tinha sua própria energia e era seguida por uma outra que nem ela. A própria substância de cada linha dava uma forma à página, a sensação de alguma coisa esculpida ali. E, aqui, afinal, estava um homem que não tinha medo da emoção. O humor e a dor estavam misturados numa esplêndida simplicidade. Começar aquele livro foi um selvagem e enorme milagre pra mim.

Eu tinha um cartão da biblioteca. Tirei o livro, levei-o para meu quarto, me joguei na cama e li, e eu sabia muito antes de terminar que aqui estava um homem que tinha desenvolvido um jeito diferente de escrever. O livro era Pergunte ao Pó; e o autor, John Fante. Ele ia ser uma influência permanente sobre o meu modo de escrever.

Terminei Pergunte ao Pó e procurei outros livros de Fante na biblioteca.
Achei dois: Dago Red e Espere Até a Primavera, Bandini. Eram da mesma categoria, escritos com as tripas e com o coração.
Sim, Fante teve um puta efeito sobre mim. Logo depois de ter lido seus livros, comecei a viver com uma mulher. Ela bebia mais que eu e tivemos umas brigas brabas e então eu gritava para ela:
- Não me chame de filho da puta! Eu sou Bandini, Arturo Bandini!

Fante era meu deus e eu sabia que os deuses devem ser deixados em paz, não se bate na porta deles. Mesmo assim eu gostaria de saber onde ele tinha vivido em Angel’s Flight e imaginei que ele ainda podia estar vivendo lá. Quase todo dia eu passeava por lá e pensava: foi por essa janela que Camila passou? Essa é a porta do hotel? E essa a portaria? Nunca cheguei a saber.

39 anos depois, reli Pergunte ao Pó. Isto é, reli este ano e lá estava ele inteiro, como as outras obras de Fante, mas esta é a minha predileta porque foi minha primeira descoberta da mágica.

Há outros livros além de Dago Red e Espere Até a Primavera, Bandini. São Cheio de Vidae A Irmandade da Uva. E, atualmente, Fante tem um romance em obras, uma obra romance em processo, uma obra em obras, Um Sonho de Bunker Hill.

Através de outras circunstâncias, finalmente encontrei o autor este ano. Tem muito mais coisa na história de John Fante. É a historia de uma sorte terrível, e um terrível destino, e de uma coragem rara e natural.

Algum dia vai ser contada mas eu sinto que ele não quer que eu a conte aqui. Mas quero dizer que o jeito de suas palavras e o jeito do seu jeito são ainda os mesmos: fortes e bons e quentes.
Chega. Agora esse livro é de você.
(Extraído de Pergunte ao Pó - Editora Brasiliense, 1987)